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Marcos Resende Amigos

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Adib Salomão - De Volta Para O Futuro - 450 Anos

 

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Nestes tempos de Matrix, dou de cara com o Neo. Procuro por Morpheus e Trinity, mas, não, ele está sozinho. Parado, olhando não sei para onde. Não sei o que. Será que espera pelo Smith? O vento balança sua veste negra, abrindo-a. Parece até mesmo uma batina de padre. Parece, não, é uma batina!


Aproximo-me lentamente. Antes que eu falasse alguma coisa, o “padre/Neo” se vira para mim e pergunta:

— Olá! Aqui é São Paulo de Piratininga?
— É, respondo meio cabreiro. “São Paulo de Piratininga”? Ninguém mais chama São Paulo assim.
Pergunto:
— O senhor é de fora? Está procurando algum lugar? Precisa de ajuda?
— É, bem, já estive aqui há muito tempo. Mas as coisas mudaram um pouquinho desde a última vez. Procuro por um barracão, entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí...

Barracão? Bom, carnavalesco ele não é, não leva jeito. Deve ser algum padre que ajuda alguma comunidade carente lá pros lados da Avenida do Estado. Ele continua:

— O senhor sabe onde fica o rio Anhangabaú?
— Ih, o rio já era. Foi canalizado há muito tempo. Eu mesmo nunca vi esse rio. Aliás, minto. Quando chovia, aí sim, o Anhangabaú todo virava um rio...
— Então, ali ficava um barracão chamado de Colégio de São Paulo, onde se catequizava índios. O senhor não conhece um Colégio dos missionários jesuítas? Ele ficava por ali...
— Colégio dos jesuítas? Bom, tem o Páteo do Colégio, onde a cidade foi fundada pelos jesuítas, o Padre José de Anchieta, o Manoel da Nóbrega...
— É esse mesmo. O senhor poderia me levar até lá?
— Claro... Mas, desculpe perguntar, o senhor é padre? Ou essa roupa... é fã do Matrix?
Ele sorri discretamente:
— Eu sou padre. E beato também. “My name is Anchieta. José de Anchieta”. A seu dispor.

Ops, gente! Que isso? Será pegadinha? Cadê a câmera? Porre não é; eu não bebo. Deve ser efeito de alguma DVA — Doença Veiculada por Alimentos. Aquela coxinha que eu comi ontem... Eu achei ela meio estranha, mesmo, aquele azedinho não era do catupiry. Mas, dar alucinação, assim? Meu Deus!

O padre percebeu minha inquietação e procurou me acalmar:
— Calma, meu filho, calma — disse ele, sorrindo. Você não está delirando, não. Sou eu, mesmo. Eu voltei para as comemorações do aniversário de São Paulo. O Altíssimo me concedeu esta graça. Rever a cidade que fundei há 450 anos. Mas, pelo jeito vou precisar da sua ajuda para me localizar. Você pode me ajudar? Você foi o escolhido!

Ué, e eu que pensei que ele era o “Neo” — o escolhido de Matrix... Agora sou eu? Como posso recusar um pedido pessoal do Padre Anchieta? Se a dona Caetana, minha mãe, fica sabendo disso... E o Padre Pedro, então? Acho que dá até excomunhão...
— Claro, padre, claro. Como posso ajudar o senhor?
— Primeiro gostaria de rever o Colégio.
— Vamos lá, então. O senhor aguenta andar ou prefere ir de carro?
— Se eu aguento andar? Filho, eu subi a serra andando para fundar esta cidade...
— Desculpe. Vamos, então?

E lá vamos nós. Eu e Anchieta rumo ao Páteo do Colégio. No caminho, ele olha embevecido os prédios, as ruas, as pessoas. Mas, estranho. Parece que ninguém repara nele. Na verdade, ele é ignorado mesmo. Dá vontade de sair gritando: “Ei, pessoal, olhem — é ele, o Padre Anchieta. Ele voltou.” Mas, procuro me controlar, manter a classe.
— Chegamos.

Os olhos do Padre Anchieta se enchem de lágrimas. Ele tenta contê-las, mas não consegue. Uma rola pelo canto do olho. E depois, outra. E mais outra. Ele fala:
— Tudo está igual como era antes. Quase nada se modificou. Acho que só mesmo eu mudei. Eu voltei... — Já ouvi isto em algum lugar. Mas não importa. De repente, somos transportados diretamente para dentro do Colégio, junto a uma parede de taipa.
— Esta parede... Nós a fizemos. E ainda está aqui — diz o padre. Êta laminha boa, hein?
Ué, como é que a gente entrou aqui? Ehh, isto tá muito estranho...
— Venha, diz o padre. Vamos ver mais.

Ele agarra meu braço, dá uma abaixadinha e... Uau! Estamos voando. Não! Chega de referências ao Matrix. Mas como posso esquecer se toda hora ele me lembra, raios? Ops, mil perdões.
Como se fôssemos um dirigível, planamos, flutuando por sobre a cidade. A Praça da Sé, o Parque D. Pedro, o Metrô, o rio Tietê...
— Olha lá, olha lá, o Corinthians! “Salve o Corinthians, o Campeão dos Campeões”... Ah, se o Jorge me visse agora...
O Parque Anhembi, o Pico do Jaraguá, o Cebolão, a Cidade Universitária...
— Santo Deus! Daquele colégio nosso chegaram a isto tudo... Que maravilha!
O rio Pinheiros, o Hospital das Clínicas, a Avenida Paulista...
— Quantos prédios, quanta gente, quanta antena...
O Ibirapuera, o Palácio do Governo, o Morumbi...
— Belo palácio... Belo estádio... Mas o time...
Os Jardins, o Zoológico, a TV Cultura...
— Fundação Padre Anchieta. É, soa bem... Desculpe, mas um pouquinho de orgulho não é pecado...

Ao ver um cartaz de propaganda política, Anchieta se surpreende.
— Ué, pensei que só a parede de taipa ainda fosse do nosso tempo. Mas, esse senhor... Ele também ainda está aqui?
— Ah, este é eterno... Aquele friozinho típico já passou, a garoa da “terra da garoa” já era, mas ele é eterno. Some uns tempos, volta depois... É como virose de criança, vem e vai, sem ninguém saber como...

Anchieta sorri. Um riso ao mesmo tempo feliz e confiante. Ele viu, com seus próprios olhos, como aquela povoação pobre e isolada virou a metrópole atual. Vista do alto, uma maravilha.
Vista aqui de baixo, com seus problemas. Alguns graves, outros nem tanto. Como a vida da gente mesmo.

Voltamos onde tudo começou. Eu, ainda atordoado com tanta coisa acontecendo — a chegada do Padre, a transposição para dentro do Colégio, o vôo sobre a cidade. Como isso era possível? Só perguntando ao próprio Anchieta.
— Padre, como o senhor fez...

Anchieta já está longe de mim. Acena discretamente, agradecido. Parece que segura alguma coisa na mão. Sim, é um telefone celular. Tento me aproximar. Devagar. Mas, a tempo de ouvir ele falando:
— Entrei.
O celular cai no chão. Vejo o Padre Anchieta digitalizar-se na minha frente e desaparecer.
— Não. Matrix de novo, não!

Olho para os lados. Algumas pessoas passam. Ninguém nota nada de diferente. Nem a minha cara de paspalho sensibiliza alguém. Bem, isto também é São Paulo. Unida e solidária nas tragédias, fria e indiferente no dia-a-dia. Terra de contrastes. Terra de migrantes. Terra de gigantes. Um sonho? Uma alucinação? Realidade virtual? Não sei...

Pego o celular no chão. Ele existe. De verdade. De repente — trimm, trimm, trimm... Atendo. Mas isso já é uma outra história. Para daqui a 450 anos.

Crônica selecionada entre as melhores do 1º PRÊMIO BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE DE LITERATURA e publicada no livro CRÕNICAS SÃO PAULO 450 ANOS, lançado na Bienal do Livro de 2004, como parte das comemorações oficiais dos 450 anos de São Paulo.

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